Artigo de opinião escrito por Nuno Pires- Direção do Estabelecimento Prisional de Bragança
O pão está presente no quotidiano das nossas vidas, sobretudo no país e na região onde crescemos e vivemos. De tal maneira que o cultivo do cereal, nomeadamente o trigo, fez e continua a fazer parte das vivências rurais e da sustentabilidade da economia agrícola.
Hoje, infelizmente, muito menos do que no passado, porque os tempos são outros, porque a vida e atividade económica e social se alteraram profundamente. Porém, tudo isso não retira importância ao “Pão-nosso” de cada dia, até porque na celebração Eucarística, o Pão, a par do vinho assume uma relevância determinante.
Ora, tudo isto significa que comer pão não é apenas satisfazer as necessidades básicas físicas, ou seja, ao nível corporal, mas é também a manifestação de valores religiosos e culturais. Embora para muitos milhões de seres humanos comer pão seja um luxo e, nos países desenvolvidos, os tempos que correm sejam caraterizados pela generalização da comida rápida, há muita gente que perpetua tradições e hábitos gastronómicos relacionados com o cultivo, preparação e consumo de alimentos derivados dos cereais tradicionais.
Vem isto a propósito das ceifas, ou melhor das segadas, cujas tarefas que se revestiam de grande azáfama, em tempos não muito distantes, evidenciavam rituais e simbologias culturais interessantes, vincadas em tradições que se perpetuaram por várias gerações. Posso dizer que, pelos menos até à minha geração, as gentes rurais viveram intensamente a labuta das segadas, a que os mais eruditos chamavam ceifas.
E quem não se relacionou com este tipo de trabalhos, certamente se lembrará dos tempos da Escola Primária, da lição dos “Ceifeiros”. Era uma atividade agrícola que mobilizava famílias, aldeias inteiras e muitos jornaleiros (segadores/ceifeiros) vindos de outras paragens, que se entregavam àquela faina, desde o nascer, até ao pôr-do-sol. Apesar do trabalho duro, o entusiasmo era transversal, em perfeita sintonia com a festa, a alegria, a música e a dança. Isto, sem esquecer as sopas, as merendas e os almoços das segadas. Mas, por vezes, o “caldo entornava-se” quando estas refeições eram transportadas nos alforges dos jumentos. Frequentemente e de forma inesperada, obrigavam as mulheres a grandes tormentos, principalmente quando eram atacadas por moscas ou moscardos. E tudo isto, na memória de quem o sentiu e viveu, ficou. Ainda hoje, não só se contam peripécias desses tempos, como se cantam as cantigas da segada. Uma riqueza musical a preservar.
De foice em punho, para muitos gadanho, ou seitoura numa mão e “dedais de cabedal” na outra, a segada começava ao nascer do dia, fazendo-se uma pequena pausa após o almoço para dormir a sesta, à sombra de uma qualquer árvore ou parede, tendo como colchão a terra dura e seca, ou a erva de algum lameiro.
Porém, para além dos segadores, havia sempre aqueles com dupla função, que segavam e atavam. Como os fios eram escassos, na sua substituição eram utilizadas as bancelhas de centeio para atar. Então, os atadores juntavam duas ou três gabelas, que haviam sido compostas por manhuços. Depois de bem apertadas e artisticamente entrelaçadas nas pontas, faziam um molho, porventura duro e bem pesado, mas que não se desatasse. É que era uma vergonha para um segador/atador desfazer-se um molho que tivesse atado. De referir que, em muitos casos, também havia aqueles que estendiam a bancelha no chão, para o atador terminar a atadura. No final do dia, juntavam-se os molhos, ou como se dizia, o pão, em mornais, onde ficavam a aguardar a acarreja, que os deveriam levar para as eiras, onde seriam malhados/debulhados.
De salientar que a quantificação da colheita da ceifa era medida em pousadas. E cada pousada tinha quatro molhos. Por isso, era habitual ouvir-se: quantas pousadas deu esta ou aquela terra, que um lavrador havia colhido, ou transportava um carro de vacas, bois, burros ou machos. Todavia, neste contexto, e não menos importante na orgânica funcional dos trabalhos inerentes às segadas, era a pessoa que “chegava” o vinho, ou ia buscar a água, num cântaro de barro a uma qualquer fonte nas redondezas. Normalmente um(a) adolescente ou um adulto com menos capacidades laborais, mas cuja ação era muito requisitada.
Enfim, tanta coisa se poderia dizer e contar sobre as segadas feitas à mão. Contudo, a mecanização agrícola contribuiu para pôr fim a esta tradição. Deixo, no entanto, aqui um pequeno registo, em jeito de lembrança/recordação para uns e novidade/elucidação para outros, pois considero de primordial importância que todos saibam o quanto custava colher o pão, para que possam dar-lhe o devido valor à hora da refeição.