Há um século nascia um dos mais notáveis transmontanos de todos os tempos, o Eng.º Camilo de Mendonça (Vilarelhos, 23 de Julho de 1921, S. Julião da Barra, 5 de Abril de 1984). Seria muito injusto que ao lembrarmos o Homem não lembrássemos o seu Pensamento. Curiosamente, passa meio século sobre a publicação dum curto (mas eloquente) parágrafo sobre si, escrito por Augusto de Carvalho, na revista Tempo de 24 de Janeiro de 1971, que então se publicava em Moçambique: “Lisboa – A Assembleia Nacional aprovou numa das suas últimas sessões, com emendas, o projecto de lei da autoria do deputado Camilo de Mendonça, sobre a designação de vogais para os organismos de coordenação económica. Camilo de Mendonça, parlamentar do nordeste transmontano, uma das regiões mais estioladas do País, de onde as gentes fogem para o estrangeiro à procura de melhores dias, é um dos homens mais activos da Assembleia. Salientou a propósito, que os organismos de coordenação económica deixaram de corresponder de uma forma indiscutível, às exigências para que foram criados, devido, por um lado, à corrosão do tempo, ao efeito da burocratização, à progressiva desactualização de métodos e de processos, à crescente inadaptação a novas exigências e, por outro lado, à constituição das corporações e também da nova orgânica do Ministério da Economia. 

De resto – são palavras do Eng.º Camilo de Mendonça – organismos de coordenação económica e grémios obrigatórios, além de pesarem duramente nos circuitos económicos, por força das taxas cobredas e do ónus sobre os produtos que movimentam, constituem um elemento de estagnação económica, conduzem a inexplicáveis duplicações de serviços e promovem um desaproveitamento de técnicos universitários e médios, que escasseiam, de forma marcada, para missões de desenvolvimento, gestão ou assistência técnica e se consomem em tarefas burocráticas ou fiscais, quando não têm modo de passar o tempo. Uma das notas salientes foi o diálogo animado entre Camilo de Mendonça e o dr. Martins da Cruz, que discordava da iniciativa camiliana”.

Ficaram célebres alguns desses acesos debates, por diversas vezes e por diversas matérias, que puseram frente a frente Camilo de Mendonça e opositores, ao longo dos anos em que teve assento na Assembleia Nacional e na Câmara Corporativa. Dum lado, enraizado na sua sólida formação cristã, o inconformismo com a realidade dura e a vontade de a transformar em progresso e, do outro, a defesa do status quo. Testemunha desse tempo como raros, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, na sua passagem por Valpaços em Maio de 2017, descreveu-o justamente como um homem adiantado no seu tempo e, por isso, fatalmente atingido pelo que acontece em Portugal aos homens adiantados no seu tempo: incompreendidos em vida apesar de o futuro lhes dar razão.

Mesmo que o desfecho tenha sido o que foi e que a obra, porque incompleta e tendo sido delapidada, não tenha frutificado idealmente, foi significativa então, decisiva na vida de muitos e ainda hoje invocada como razão de ser para a permanência de tantos e para pistas do nosso desenvolvimento. 

Ainda hoje é incómoda a discussão dessa oportunidade perdida. Tal como o era quando, sem olhar ao intempestivo das suas afirmações convictas, Camilo de Mendonça o invocava para a Assembleia Nacional, o que fez várias vezes. Relembramos uma delas. Decorria a VII Legislatura, estava reunido o plenário em Sessão Extraordinária, 5 de Maio de 1959. Na ordem do dia discutia-se o plano director do desenvolvimento urbanístico da região de Lisboa. Camilo de Mendonça aproveitou para proclamar a necessidade de desenvolvimento do subdesenvolvido interior de Portugal. Com cortes para focarmos as suas palavras essenciais, fica aqui esse discurso cujo núcleo de pensamento se pode dizer que constituiu o cerne da sua acção: 

Não poderia começar as minhas considerações acerca dos problemas suscitados pela proposta de lei sobre o plano regional de Lisboa sem manifestar, em termos vivos e calorosos, o apreço e o aplauso pela iniciativa do Sr. Ministro das Obras Públicas. Uma vez mais o Senhor Ministro das Obras Públicas demonstra, de maneira cabal, estar atento (…) às exigências do nosso tempo e às práticas hoje correntes na Europa. Honra lhe seja. De facto, se alguma questão constitui na actualidade preocupação sentida pelos portugueses de todas as regiões, a da elefantíase das áreas de Lisboa e Porto, o congestionamento industrial e urbano que nelas se verifica, é seguramente uma delas. Paralelamente, o despovoamento de muitas regiões donde nostalgicamente, dia após dia, vão saindo os mais novos, audazes e qualificados, em demanda de melhores condições de vida, traduz uma questão vivida com angústia cada vez por mais gente. O sentimento da oportunidade e urgência de travar uma e outra, desconcentrando no primeiro caso, propiciando novas condições de vida no segundo, processou-se rapidamente e depressa passou a fazer parte das preocupações da consciência nacional. Ir ao encontro desse sentimento, harmonizar o desenvolvimento económico, evitar os inconvenientes sociais, económicos e políticos da tendência para a concentração, assegurar condições de vida a todas as regiões, eis uma avisada orientação que merece gerais louvores, e traduz uma indiscutível necessidade económica e humana. (…) Sei que, neste campo, não faltam as filosofias – a filosofia, não direi a poesia, também é necessária nestas coisas -, não faltam as filosofias justificativas deste desenvolvimento desarmónico (…). Entretanto, os elementos do censo de 1950 revelam ter a população continental aumentado nos últimos sessenta anos quase 70 por cento, enquanto a de Setúbal e a da região de Lisboa se elevaram, respectivamente, de 180 e 147 por cento e a do Porto de pouco menos de 100 por cento. Durante o mesmo período, a da Guarda, Viseu, Bragança e Vila Real, ou seja, de Trás-os-Montes e da Beira Alta, apenas se acresceu de pouco mais de 25 por cento – seis vezes menos do que o ritmo de aumento de Lisboa, pouco mais de três vezes menos do que o crescimento demográfico do País. (…) Se pretender levar-se mais longe a análise da composição regional da população residente, da população secundária e terciária, bem como do potencial económico, concluir-se-á que, para lá dos dois polos de desenvolvimento de Lisboa e Porto, o crescimento económico tende a operar-se apenas na faixa litoral entre Setúbal e Braga e a expensas de uma crescente despopulação e depressão dos distritos do interior. (…) É necessário que se definam sem detença as regiões e os seus complexos industriais para que desde já se abram à região as indispensáveis perspectivas, que é como quem diz, vias de comunicação, escolas técnicas, habitações satisfatórias, hospitais e centros de assistência apropriados, fontes de abastecimento alimentar, etc. (…) As preocupações do arranjo do território no plano nacional podem ter uma raiz fundamentalmente económica, mas também social ou até política e administrativa. Quer dizer: os motivos que determinam a acção podem não ser principalmente económicos, mas, outrossim, marcadamente humanos, quer sob o ângulo social, quer sob o ponto de vista político ou político-administrativo.

(…) Em que medida, porém, a centralização administrativa é responsável pela concentração humana e industrial verificada e ainda pelo consequente êxodo rural? (…) Pelo que se refere aos factores negativos que determinam ou estimulam o êxodo rural, devem anotar-se motivos económicos, sociais e psicológicos: a diferença de remuneração de assalariados e empresários na agricultura e na indústria, a redução sucessiva da parte do rendimento agrícola no rendimento nacional, a progressiva distorção dos preços agrícolas e industriais pela constante deterioração daqueles parecem decisivos; dos motivos sociais e psicológicos devem destacar-se o desconforto da via no campo, a deficiente protecção social e de meios de defesa sanitária, a atracção exercida pelo género ou modo de vida citadino, a preocupação de melhorar as condições de vida, que podem ter-se como mais importantes. Como resultado ou consequência da acção congregada destas forças convergentes pode dizer-se que o estado de alma do rural é de inteira frustração, sentimento que traduz uma tragédia, que Simone Weill caracterizou nos termos seguintes: um mundo social está profundamente doente quando o camponês trabalha a terra com o pensamento de que se é camponês é porque não foi suficientemente inteligente para ser outra coisa …                                  
Quem ousará negar a esta sentença uma profunda actualidade na nossa vida, na vida que, graças a Deus, vamos vivendo? …

(…) A organização do espaço não se situa, assim, ao nível técnico, mas da política, constitui uma certa concepção da vida nacional e exige a colaboração de diversas disciplinas, a cada uma das quais é preciso dar um sentido. E por isso que já se disse que uma verdadeira política de organização do espaço supõe a reforma do Estado, da Administração, da fiscalidade, dos costumes. (…) Quem se detiver a olhar sem paixão, mas também sem romantismo, para o desequilíbrio regional, fortemente pronunciado, para a anemia de muitos dos nossos distritos, para o estiolamento da vida social, intelectual e económica da generalidade das nossas cidades interiores, quem apreender a ansiedade da nossa gente e a angústia dos migrantes, quem se aperceber dos inconvenientes de toda a ordem desta situação humana e material e tiver uma visão clara sobre os motivos de intranquilidade política e social que projecta no futuro, creio, não terá dúvidas sobre a existência de um forte e vivo problema político a este respeito.
(…) O arranjo económico, demográfico e social do nosso território constitui um problema político agudo, que tem de ser visto, com rapidez e decisão, sob este ângulo, sob esta preocupação.

Não basta já – e sente-se bem – continuar uma política utilíssima, embora em escala já insuficiente, de melhoramentos rurais, de auxílios sob diversas formas, mas sempre funcionando como paliativos.  É necessário, é urgente, tomar estas questões, tão vivas e actuais, tais quais se revelam à inteligência e à sensibilidade dos homens: como um problema político, a resolver por meios políticos, visando fins políticos. Chamei-lhe política do regionalismo, e por meio dela estou a vislumbrar uma economia mais humana, uma estrutura económico-social melhor adaptada às exigências do homem contemporâneo, uma administração menos tecnocrática, menos asfixiante a mais acercada das realidades, uma harmonia entre as regiões, uma maior autonomia e liberdade dos homens, vivendo e agindo num meio menos artificial e mais próprio ao desenvolvimento da sua personalidade, um maior equilíbrio entre a agricultura e a indústria, enfim, uma modificação, bem requerida, no sentido de, fugindo a demagogias dos regimes de massas, assegurar uma efectiva participação dos homens na coisa pública.

Aqui está um objectivo e também um meio que reputo eficiente, capaz de responder à ansiedade, de propiciar colaborações, de vencer desânimos, de afogar dissídios, de apagar cansaços, de restabelecer confianças, aqui está um meio que, por si, tornaria muitos homens de subordinados a senhores do seu destino, uma tarefa que podia constituir uma verdadeira revolução, pois não lhe falta nem a magia do sentimento, nem a verdade da inteligência. Por mim não tenho dúvidas de a proclamar como urgente necessidade a satisfazer (…)

É urgente que este processo se acelere (…) mas é igualmente necessário que a orientação em boa hora adoptada por este sector da administração pública seja acompanhada de medidas imediatas e paralelas no domínio das economias, particularmente na localização industrial, na política eléctrica, na revalorização agrícola, etc. (…) Enquanto respeita à revalorização da nossa agricultura, deverá ter-se presente encontrarem-se actualmente a pequena e a média explorações em situação particularmente difícil, lutando pela sobrevivência, e a única forma positiva de lhes acudir será promover, rápida e decididamente, uma política de descentralização industrial.
(…) Se quisermos resolver muitos dos nossos problemas, se pretendermos enfrentar, séria e decididamente, as questões (…), teremos de preparar um plano coerente e harmónico de desenvolvimento regional e executá-lo com coragem e decisão.

Praza a Deus que aos outros departamentos da administração pública as questões se revelem com a mesma clareza, por eles sejam vistas com o mesmo espírito e enfrentadas com igual senso das realidades.

Se assim acontecer, a iniciativa agora tomada não deixará de ser frutuosa, de satisfazer manifestas ansiedades, de resolver problemas urgentíssimos.

(…) Quero terminar chamando a atenção do Governo e do País para a necessidade de formular uma verdadeira política de regionalismo, para uma política de humanização da economia, de justiça na repartição do rendimento entre os sectores da produção, os homens e as regiões, de dignificação do homem, de valorização rural, de desconcentração à escala humana, de revigoramento da vida local.
Creio na sua oportunidade, creio na sua justeza, creio na sua realidade, creio na sua eficiência, creio no seu resultado económico, social e político.

Sr. Presidente: creio na política do regionalismo. O País, estou certo, também acredita. 

Oxalá o Governo não deixe de acreditar.
Tenho dito.

1973. Camilo de Mendonça e António Eduardo Carneiro, dois trasmontanos de craveira nacional para quem o desenvolvimento regional era inadiável
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