Artigo de opinião escrito por Patrícia Freitas, licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A recente tragédia que tomou conta do discurso da comunicação social, a morte de cinco pessoas que decidiram ir visitar os destroços do Titanic, rapidamente me recordou um filme que tive oportunidade de ver este ano e que, apesar da minha incipiente praxis cinematográfica, me tocou profundamente de início ao fim. Resumindo um pouco a intriga, ela consiste numa crítica bastante apurada à sociedade moderna, aos seus vícios, à sua tendência para atingir o ridículo. Como diria Antero de Quental – e outros oitocentistas – o estado da decadência, só que extroplando as fronteiras nacionais. O âmago da crítica do filme é, portanto, essa sórdida e amarga forma de vida das classes económicas dominantes, que constantemente competem entre si para ver quem tem mais poder. De certa maneira, é a transposição do real para um ecrã, levando o espectador a confrontar-se com cenários perfeitamente absurdos, desde a comercialização vazia das aparências, até ao diálogo sufocante acerca de quem irá pagar a conta do jantar. Se abrirmos o invólucro de tal enredo, encontramos muito daquilo que é o imaginário comportamental da burguesia, dos proprietários do capital, dos endinheirados, dos possuidores; enfim, a manutenção necessária do status quo das classes sociais mais privilegiadas. Detenhamo-nos, então, na existência do privilégio e no seu papel crucial no aumento das desigualdades de classe. 

Sei que para os intelectuais liberais deste país e dos outros, a luta de classes é uma banalidade conceptual ultrapassada, exclusivamente confinada às teorias marxistas e ausente da prática social. Como se ainda vivessem na ilusão da nação orgânica característica dos regimes fascistas, onde o corpo social da nação seria único e integral, onde a boa convivência entre patrões e operários seria causa da abolição permanente da luta de classes. De uma outra perspetiva, na qual me filio, a luta de classes constitui o maior motor da História. 

Deste modo, o que se passou recentemente constitui, por um lado, um episódio lamentável do ponto de vista humano, porque se perderam vidas e isso é sempre mau, mas também um momento de reflexão sobre três assuntos que merecem uma explicação. O primeiro é, antes de mais, a continuidade dos padrões dos discursos hegemónicos nos meios de comunicação e a inerente socialização do desastre, quase romantizando uma expedição aventureira ao oceano profundo. De resto, o comportamento habitualmente adotado pela televisão e pelas redes sociais: esqueçam-se da vossa vida precária, esqueçam as vossas dificuldades em pagar a prestação ao banco, esqueçam que um punhado de indivíduos detém a riqueza que vocês produzem nas vossas oito horas – ou mais, quem sabe – de trabalho. O segundo, diretamente ligado ao primeiro, prende-se com a opção de classe que se faz quando se opta por quantificar a tristeza. Para alguns, o impacto causado pela morte destas cinco pessoas foi substancialmente maior do que o impacto causado por outro tipo de desastres humanos que acontecem, agora que me lembro, todos os dias, ao longo do mar mediterrâneo, e por aí fora. Tudo isto nos leva ao terceiro aspecto que é, no fundo, demasiado abrangente para que o consiga explicar em tão curto espaço. No essencial, compreendemos que nem toda a gente pode pagar para ir ver os destroços do Titanic, ou para ir ao espaço. Quem vive o seu dia-a-dia a pensar se o dinheiro se vai, milagrosamente, esticar até ao próximo salário, só se lembra do Titanic quando ele passa na televisão. Chegamos a um dos incontáveis paradoxos do sistema capitalista: a ostentação e os caprichos de uma classe em oposição cada vez mais marcante à miséria e ao empobrecimento de outra classe. 

O problema é que, tal como aconteceu quando um conjunto de milionários se lembrou de fazer uma viagem ao espaço e ninguém ousou perguntar mas porquê e à custa de quê, também esta expedição permanecerá à superfície de uma tentativa de interpretação crítica que poderia alcançar consciências alienadas. Para isso, contribui não só a vasta rede de informação que está erigida à nossa volta, vazia de pensamento crítico e cheia de uma cacofonia asfixiante, mas também os poderes confortavelmente instalados na nossa modernidade, esses mesmos poderes que traduzem e perpetuam a hegemonia de certas elites.

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