O Natal tem esta capacidade extraordinária de reduzir o mundo ao essencial: à casa, à família, aos abraços que reencontramos e aos silêncios que só quem nos ama sabe preencher. Mas há lugares onde o Natal chega de forma diferente, com luzes mais baças, corredores silenciosos e janelas onde raramente se vê um presépio. Esses lugares são os hospitais. E neles, todos os anos, há homens e mulheres que trocam a mesa farta e o calor da família por um turno, um cuidado, uma palavra dita com doçura.
Escrevo estas linhas para eles. Para todos os que, quando o resto do país celebra, escolhem cuidar. Para os que sabem que a dor não respeita calendários e que o sofrimento não tira férias. Para aqueles que, num tempo que devia ser de pausa, continuam a dar vida.
Falo com conhecimento de causa. Recordo, como se tivesse acontecido ontem, o último Natal que passei com o meu Pai. Já vivíamos um tempo de despedida, mesmo que eu, talvez por ser filho, me recusasse a ver o óbvio. Pouco antes dessa consoada, o meu Pai tinha estado internado. As dores que já não o largavam eram a realidade crua de uma doença que o derrotava lentamente. E foi nesse período que testemunhei algo que nunca me abandonará: a humanidade de quem cuida.
Lembro-me das mãos que o ampararam, dos gestos precisos, mas cheios de ternura, do olhar meigo de quem tratava dele como se tratasse de um seu. Havia ali uma forma de estar que não se aprende num livro, que não se mede em tabelas, que não cabe num relatório clínico. Era empatia. Era respeito. Era compaixão. E num momento em que a dor teima em ser maior do que tudo, esses pequenos gestos tornam-se gigantes.
Também me recordo do que vivi em casa. A minha esposa, Carla, enfermeira e profissional de saúde, acompanhava aquele processo com uma lucidez que me era impossível. Enxergava o sogro numa condição irreversível. E, mesmo assim, mantinha a força, a serenidade, a presença,enquanto eu continuava preso à esperança infantil de que tudo aquilo não passava de mais uma batalha que ele conseguiria vencer. Numa família, cada um vive o sofrimento à sua maneira; o dela era o da profissional que sabe, o meu era o do filho que não quer saber.
Mas há momentos em que a verdade tem de ser dita, e sei hoje que fui privilegiado na forma como ela me chegou. Não posso escrever este texto sem mencionar o nome do médico Vítor Paz. Internista, incansável, competente, mas acima de tudo humano. Ele próprio percebeu que eu precisava de mais do que relatórios e atualizações clínicas. Precisava de uma conversa. Da conversa. Levou-me a um canto de uma sala, falou comigo olhos nos olhos e explicou-me o que aí vinha, sem medo da dureza que a realidade exigia, mas também sem nunca abdicar da delicadeza com que só os grandes profissionais sabem lidar com a fragilidade alheia. Foi um gesto simples, mas gigantesco. Um gesto que só está ao alcance de quem vê muito além da medicina.
É por tudo isto, por estas memórias que me são tão presentes, que não consigo deixar passar este Natal sem escrever sobre quem fica nos hospitais enquanto nós estamos em casa.
Porque é fácil esquecer, mas são eles os guardiões silenciosos deste tempo. São eles que seguram a mão de quem tem medo. São eles que aliviam a dor de quem já só pede descanso. São eles que preenchem o vazio de quem passa a consoada longe da família. E são eles que ajudam a dar dignidade aos últimos dias, às últimas horas, aos últimos gestos.
O Natal nos hospitais é diferente. Não tem mesas longas, mas tem partilhas. Não tem lareiras acesas, mas tem luzes pequenas que se mantêm acesas noite dentro. Não tem risos de crianças, mas tem palavras sussurradas que aquecem. E, ano após ano, há médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos, seguranças, administrativos, todos eles, que mantêm vivo aquilo que é verdadeiramente o espírito desta época: a entrega ao outro.
Quando olho para trás, percebo que o que me salvou nesses dias foi exatamente isso: o cuidado humano. Não só o que deram ao meu Pai, mas o que me deram a mim. Porque num hospital, cuidam-se corpos, mas também se amparam almas e isso não existe em nenhum protocolo, em nenhuma escala de serviço, em nenhum manual.
Por isso, neste Natal, a minha opinião é simples: antes de pensarmos no que recebemos, pensemos nos que dão. Nos que dão sem esperar reconhecimento. Nos que dão quando ninguém vê. Nos que dão porque, no fundo, acreditam que o cuidar é uma forma de esperança que nunca se deve perder.
A todos os que passam a consoada num hospital, em vez de a passarem no aconchego da família, deixo a minha profunda gratidão. Porque, quando o mundo parece parar, vocês continuam. E porque, quando alguém está mais frágil, vocês tornam-se a força que ele não tem.
Obrigado. Pelo que fazem, pelo que representam e pelo que permitem que recordemos com paz.
Paulo Silva Reis
PS: Não sou profissional de saúde, nem tão pouco da área das ciências, mas também eu senti a necessidade de usar este espaço, habitualmente, utilizado e coordenado por profissionais de saúde, para fazer esta singela homenagem a todos vós que também aqui deixais grandes testemunhos e conselhos para todos os nossos seguidores.













