Dois membros da Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Mirandela (AMM) estão a ponderar avançar com uma providência cautelar para suspender a instalação do Parque Eólico de Mirandela, na Serra dos Passos/Santa Comba, cujos trabalhos estavam previstos para arrancar ainda este mês.

A intenção é “permitir que sejam feitos estudos arqueológicos que levem à criação de um Plano de Ordenamento de Território que responda adequadamente à riqueza única do seu património, articulando-o e valorizando-o na sua dimensão cultural e natural, ponderando-se até a criação de um parque arqueológico”.

Depois de uma reunião dos membros da comissão permanente daquele órgão autárquico com representantes de todas as partes envolvidas na instalação do parque eólico numa área que abrange a serra de Santa Comba e de Passos, nas freguesias de Lamas de Orelhão e Passos, onde está prevista a instalação de seis aerogeradores, dois membros daquela comissão saíram muito preocupados com o que ouviram.

Jorge Humberto, da CDU, entende que este processo, que já vem de 2009, sempre esteve envolvido em muito secretismo e foi pouco transparente. “É um negócio que não é do conhecimento da grande maioria da população de Mirandela nem das freguesias onde as pessoas vão ser submetidas à presença destas seis aerogeradores”, refere o deputado municipal.

“Foi um processo que esteve sempre envolvido num secretismo absoluto, visto que há lacunas que não foram cumpridas, por exemplo, em 2016, foi atribuída uma licença a este consórcio de relevante interesse municipal para a instalação das eólicas esse documento nem sequer baixou à Assembleia, mas também atual presidente da câmara prometeu que iria trazer esta questão à Assembleia, mas não o fez. Pelo que a discussão não foi pública nem transparente”, acrescenta.

Já José António Ferreira, historiador e membro do PS na comissão permanente, diz estar preocupado por “estar em causa um rico património arqueológico com, pelo menos, 7.000 anos de existência, a que se acrescenta os cinco núcleos classificados, e em vias de classificação, como Imóvel de Interesse Público”.

O deputado municipal lembra que o estudo do património arqueológico da Serra de Passos, iniciado em 1987, “ainda se encontra em curso e à medida que os trabalhos, nomeadamente de prospeção, se vão realizando, a dispersão dos sítios pelo corpo da serra e a sua densidade vai aumentando. Isto é, ainda não se conhece cientificamente todo o seu território com a devida minúcia, mas é seguro que a sua importância é já ímpar, tal como é certo que esta importância se ampliará no futuro, em consequência do desenvolvimento dos trabalhos de investigação que, entretanto, se desenvolvam”.

Pelo que José Ferreira entende ser “do mais liminar bom senso histórico que a Serra tem de ser entendida como toda uma paisagem cultural unitária, não se podendo dissociar, do ponto de vista científico, os sítios individuais do conjunto, nem o conjunto do todo espacial que ocupa no corpo da serra. A instalação de um Parque Eólico corta de forma inequívoca  com a unidade dessa paisagem cultural e compromete toda a sua preservação”, refere o deputado municipal dando como exemplo o próprio Parecer da Comissão de Avaliação do Parque Eólico, de 2016. “Reconhece, relativamente aos impactos sobre o património, que a implementação deste projeto, que irá alterar a perceção e fruição da paisagem onde se inserem estes elementos patrimoniais, e que ocorrerá durante toda a fase de exploração do PE, incluindo a linha elétrica, será um impacte de difícil minimização ou compensação”.

José Ferreira faz questão de sublinhar que esta avaliação do impacte do projeto sobre o património arqueológico da serra “se produziu sobre dados e documentação anterior a 2014, e que não foi atualizado, com os trabalhos de investigação e descobertas entretanto realizadas”.

Recorda também que há neste momento uma potencial numa candidatura desta Serra, nas suas mais diversas valências, a Património Mundial da UNESCO, em pareceria e rede com outros 3 conjuntos similares em território espanhol (Castilla y Léon) que, em seu entender, “fica comprometida com a construção do parque eólico”.

Além disso, adianta que está em curso um projeto de divulgação e valorização da arte rupestre da Serra de Passos, o “EscarpArte”, focado em dois dos maiores núcleos de pinturas. “O desenvolvimento deste projeto com a simultânea instalação de um parque eólico no mesmo espaço é um contra-senso sintomático, de um completo desnorte no ordenamento daquele território. Os sítios arqueológicos não podem ser entendidos individualmente. A serra é fisicamente e patrimonialmente uma unidade.”, conclui.

Perante estes argumentos, José António Ferreira e Jorge Humberto entendem ser urgente a suspensão do arranque do parque eólico. “Temos o dever de ponderar muito bem o custo-benefício de cada uma das nossa decisões com toda a seriedade, pois teremos, sem dúvida, as gerações do Futuro a cobrar-nos, com justiça, cada uma das nossas más decisões”, referem.

Pelo que, na ausência de um adiamento do início das obras de instalação do Parque Eólico na serra, que permita o eventual reconhecimento do seu valor patrimonial maior e a potencial classificação da Unesco de Património Mundial da Humanidade, “só há uma via para o efeito, sendo que só poderá ser alcançada com a interposição de uma providência cautelar, que imponha a suspensão do início dos trabalhos, pois é fundamental pelo menos suspender a imediata instalação do Parque Eólico até que os estudos arqueológicos estivessem mais avançados para então se fazer uma nova avaliação da questão”.

Para além desta intenção, Jorge Humberto, da CDU, vai mesmo requerer a realização de uma assembleia municipal extraordinária para se discutir todas as questões que envolvem a instalação do parque eólico de Mirandela. “Para que todos os intervenientes possam dar uma explicação sobre este processo e para que se possa decidir de uma forma transparente o que vai ser mais importante para Mirandela: se as eólicas ou um parque arqueológico”, afirma.

Petição em andamento

Esta contestação à construção do parque eólico assumida pelos dois membros da comissão permanente da AMM vem juntar-se à de arqueólogos.

Para Maria de Jesus Sanches, a arqueóloga coordenadora da equipa que descobriu as várias figuras pintadas nos abrigos da Serra dos Passos/Santa Comba, a instalação do parque eólico, “tal como está formulado, não coloca em perigo os painéis conhecidos, ou seja, sob o ponto de vista da investigação, o parque não é um óbice, não destrói nada”, afirmou.

No entanto, adianta que, há cerca de dois anos, “alguns investigadores estão a trabalhar no inventário para uma candidatura a património da humanidade da UNESCO de um conjunto de quatro núcleos”, um deles da serra dos Passos/Santa Comba, o único em Portugal que concentra cerca de meia centena de abrigos com pinturas do período da pré-história (do Neolítico e do Calcolítico).

Aqui sim, Maria de Jesus Sanches não tem dúvidas que o parque eólico vem deitar por terra essa possibilidade. “Sob este ponto de vista, o parque eólico impede que o conjunto seja tido como um todo”.

Entretanto também um grupo de cidadãos, criado nas redes sociais, está a preparar uma petição para fazer chegar à Assembleia da República para a revogação da construção do parque eólico de Mirandela e a criação de um plano de ordenamento do território que responda à singularidade e valor patrimonial da serra dos Passos/Santa Comba.

Recorde-se que os trabalhos de instalação do Parque deviam arrancar em Setembro e estar concluídos em dezembro de 2023, representando um investimento privado de 30 milhões de euros. Isso mesmo foi assumido pelo administrador da empresa Perform 3, a quem foi concedido o licenciamento pela Direção Geral da Energia e Geologia, no início do mês de agosto, numa sessão de esclarecimento que aconteceu em Lamas de Orelhão.

Nessa altura, Aurélio Tavares confessou estar “surpreendido” com a contestação que tem surgido em redor da instalação deste parque eólico, quando o processo já começou há doze anos e passou por um rigoroso escrutínio de várias entidades. “Fico muito espantado, porque estamos num país em que qualquer projeto que seja legal é uma complicação e na verdade temos licença para tudo, houve editais às populações por parte de todas as entidades e quando se está a começar o trabalho é que surgem estas questões”, lamentou.

O administrador da Perform 3 deixou entender que este processo “não digo que seja irreversível, mas será muito difícil de parar porque estão envolvidas avultadas quantias” e lembrou que foram confrontados com uma série de pareceres de entidades e “todos eles foram aprovados, pelo que para mim isto é uma surpresa, mesmo a questão da arqueologia a declaração de impacte ambiental foi emitida, agora se há coisas novas têm de ser estudadas e analisadas em conjunto”, disse.

Aurélio Tavares adiantou os seis aerogeradores terão capacidade para produzir 25 megawatts de energia elétrica.

Como contrapartida financeira, o Município de Mirandela vai receber 1 milhão e meio de euros. Para além disso, o Município mirandelense tem direito a 2,5% da receita bruta anual que a empresa terá com a venda da produção de energia, enquanto a percentagem para as assembleias de compartes de Lamas de Orelhão e Passos será de 0,5%.

Nessa mesma sessão de esclarecimento, o vice-presidente da câmara de Mirandela revelou onde seria aplicada a verba que a autarquia vai receber como contrapartida da construção do parque eólico. Orlando Pires disse que “500 mil euros serão para investir em eficiência energética de vários edifícios municipais, como escolas, museus, a piscina municipal e outros”.

Da restante fatia de um milhão de euros, uma parte, ainda não quantificada, vai ter como destinatárias as freguesias de Lamas de Orelhão e de Passos, abrangidas por aquela infraestrutura.

Recorde-se que a presidente da junta de freguesia de Lamas de Orelhão, Vanda Preciso reivindicou um investimento de 500 mil euros na sua freguesia, alegando que cinco dos seis aerogeradores do Parque Eólico irão ficar instalados numa zona dos Baldios da freguesia de Lamas de Orelhão. 



Jornalista: Fernando Pires

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