Artigo de opinião escrito por Patrícia Freitas – estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A sobrevivência da sociedade patriarcal assenta em mecanismos de controlo e tutela sobre a mulher. A determinação da sua capacidade para tomar certas decisões está a cargo de um punhado de homens, geralmente acima da faixa etária dos trinta anos, aparentemente em condições de se apoderarem da discussão de temas que, neste século, já deviam estar bem regulamentados e enraizados até nas mentes mais conservadoras. A recente discussão em torno do aborto simboliza precisamente que ainda há um longo caminho a percorrer nas sociedades ocidentais ditas civilizadas para se alcançar aquilo que é um direito que todas nós, mulheres, deveríamos ter. 

Façamos uma viagem pela história atribulada do aborto nos Estados Unidos. Tudo começou com um confronto entre uma jovem de 25 anos, Norma McCorvey (que preferiu usar o pseudónimo “Jane Roe”) e Henry Wade, um advogado anti-aborto. Decorria o ano de 1969 e, como sabemos, a década de 60 ficou especialmente marcada por vicissitudes que estariam destinadas a abalar a ordem social e política vigente. Acompanhando as transformações culturais, e porque a cultura é indissociável da história das mentalidades, as questões sociais ganharam terreno no debate público. Norma McCorvey estava grávida pela terceira vez e alegou ter sido violada, mas mesmo assim foi obrigada a ter a criança. Só em 1973, após vários apelos, é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos legalizou o direito ao aborto. 

Décadas volvidas, a polémica volta a estar no centro das atenções da opinião pública. Em grande parte, isto deve-se ao facto de a maioria conservadora do Supremo Tribunal americano querer reverter uma lei fundamental que permite que as mulheres abortem. Depois de uma gravidez indesejada, cabe à mulher decidir se quer continuá-la ou interrompe-la. É muito simples, mas parece que ainda existe um certo conservadorismo social que quer dizer às mulheres o que devem ou não fazer com o seu corpo. Esta revisão encaminha-nos para um grande retrocesso civilizacional: quando pensávamos que tudo está a correr mal, está mesmo. 

A anulação desta decisão histórica pode trazer muitos problemas à saúde reprodutiva das mulheres. Se a proibição do aborto for declarada, muitos Estados americanos verão em fuga as mulheres que decidirem interromper a gravidez. Fugas internas ou externas que certamente só trarão prejuízo às próprias mulheres. Algumas afirmaram mesmo que abortar em casa seria uma solução. Mais preocupante ainda é a situação das mulheres afro-americanas, latinas, indígenas e transgénero, que terão mais dificuldades em aceder ao aborto seguro. Alguns países vizinhos já demonstraram disponibilidade para acolher as cidadãs dos EUA, mas há um problema: é provável que só as mulheres em melhor situação financeira consigam transpor a fronteira, enquanto as que pertençam a grupos socioeconómicos mais frágeis terão mais barreiras para atravessar, podendo até ficar pelo caminho. Karina Gould, a ministra canadiana das Famílias, Crianças e Desenvolvimento Social afirmou que “25 milhões de abortos inseguros acontecem todos os anos. Criminalizar o aborto não significa que esses abortos não vão acontecer. O que significa é que serão abortos inseguros”.

Como é que o ultra-conservadorismo chega a Portugal? António Almeida Costa é um dos nomes indicados para suceder à vice-presidência do Tribunal Constitucional. Em 1984, o mesmo juiz escreveu um artigo onde defendia que a interrupção voluntária da gravidez só seria aceitável em caso de morte eminente da mãe. Isto quer dizer que, mesmo em caso de violação, o aborto não deveria ser permitido. Se já não era admissível ponderar isto há 38 anos atrás, depois de termos Álvaro Cunhal a defender a sua tese sobre o aborto na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, como é que podemos lidar com o extremismo hoje em dia? É que, concorde-se ou não, tenha-se valores cristãos ou não, o aborto é um direito de todas as mulheres, e não é passível de ser contestado em prol da moral. 

A legalização do aborto é uma conquista histórica. Apesar disso, ainda andamos aqui às voltas a discutir uma coisa que me parece ser tão óbvia e concreta. O tempo de encarar a mulher como um objeto cuja finalidade é a reprodução já acabou. E quem for saudosista desse tempo, lamento informar, mas está exatamente do lado extremo do repúdio pela dignidade e pelos direitos universais das mulheres. 

“Nunca se esqueçam que bastará uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres voltem a ser questionados. Esses direitos nunca serão adquiridos. Tens que permanecer vigilante toda a vida”.

Simone de Beauvoir, 1986

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