Artigo de Opinião de Marisa Lages – Fisioterapeuta, Docente no Ensino Superior e Investigadora na área da Gestão

Trabalhar possibilita a construção de subjetividades correspondentes a cada época histórica, o que significa que “(…) é pelo trabalho que o homem se faz homem, constrói a sociedade, transforma-a e faz a história (…)”, segundo Araújo e Sachuk em 2007. Seguindo esta lógica, ele integra não apenas a dimensão material, mas incorpora para si a dimensão afetiva entre a organização e o trabalhador/colaboorador.

O trabalho organiza e dá sentido à existência humana, ele ocupa um lugar central na vida do homem, o que significa que se coloca além da subsistência, pois é fator de construção da identidade, ambiente de realização e socialização, fonte de autoconhecimento e transformação de si mesmo. Ou pelo menos deveria ser isto!

Trabalhando, o homem se reinventa socialmente, o que significa que no contacto com o outro, surge uma nova perceção de si e consequentemente, uma possível redefinição da sua identidade e noção de coletividade. Através do trabalho, o homem tem a possibilidade de construir novas referências de como conviver, tem a oportunidade de explorar novos ambientes e planear o seu futuro de forma mais confiante.

O trabalho é terreno fértil para o despertar de afetos, potencialidades e desejos, o que permite expressar-se, compreender-se e realizar-se nas esferas sociais, cognitivas, financeiras e sobretudo psicológicas, visto o impacto no julgamento e perceção de si mesmo através da sua produção laboral. O trabalho é grande provedor de saúde mental, pois amplia a capacidade do homem de agir no mundo e de transformá-lo ao transformar-se a si mesmo através da produção.

Ainda assim, trabalhar exige da pessoa o ajustamento a um contexto diferente do seu, que se impõe sobre ela através do estabelecimento de uma rotina e o cumprimento de normas, bem como o relacionamento com pessoas de valores e personalidades diferentes das suas. Isso implica na maioria das vezes, uma revisão ou no mínimo uma reflexão dos seus pré-conceitos.

As conjunturas organizacionais atuais exigem do colaborador uma alta performance o que significa uma maior capacidade de entrega ao trabalho, num curto espaço de tempo e com o maior nível de qualidade. O sujeito trabalha sob um ritmo intenso, com um baixo orçamento, metas cada vez mais elevadas e ainda existe a cobrança pela polivalência, ou seja, a capacidade de desempenhar várias funções diferentes do seu próprio cargo.

Os problemas surgem na medida em que o capital, representado normalmente pela gestão, tende a não considerar os critérios de quem faz o trabalho, bem como as diferenças individuais no que se refere ao tempo e ritmo necessário de cada um para o aprendizado e entrega dos resultados. Há uma tendência à padronização não só dos produtos e serviços, mas fundamentalmente dos comportamentos, o que suprime perspetivas de singularidades, da identidade e da criatividade dos mesmos. O trabalho, então, tende a se precarizar, sobretudo nas organizações pautadas no just in time, na gestão do medo, nas práticas participativas forçadas, na imposição subtil da autoacelaração, na multifuncionalidade, entre outros métodos voltados ao controle maximizado. São processos de dominação que mesclam insegurança, incerteza, sujeição, competição, proliferação da desconfiança e do individualismo, sequestro do tempo e da subjetividade.

No caso das relações interpessoais estas são cada vez mais caraterizadas pela busca das promoções, reconhecimento e status  valorizados de forma individual  o que reforça a indiferença entre os colaboradores e tende a fazer com que os mesmos reproduzam práticas de trabalho pautadas na competição e não na colaboração. Ou seja, as referências que o trabalho trazia para o indivíduo, antes caraterizadas pela relação com o seu fazer, tornam-se cada vez mais exteriorizadas e distanciadas do cerne dialético atividade-subjetividade.

O trabalhador vivencia estados de insegurança e desproteção, pois torna-se como uma éspecie de mercadoria, que facilmente pode ser descartada. Ele já não se sente fortalecido pela presença dos sindicatos, pois com a flexibilidade dos empregos e novas práticas de gestão, tudo passou a ser resolvido na própria organização, sem a mediação de terceiros. Tudo isso, tende a afetar negativamente a autoestima do colaborador, bem como a sua confiança nos outros, o que impede a construção de uma identidade coletiva e de relações mais éticas e humanizadas. A objetividade nas relações de trabalho pode impedir que o trabalho seja efetivo no que diz respeito ao desenvolvimento moral, ético e humano dos indivíduos.

Surge, assim, o paradoxo: se por um lado, através do trabalho o colaborador tem acesso ao reconhecimento de si mesmo e, simultaneamente, pela via da alteridade, ao inelutável reconhecimento do outro, por outro, a lógica hipermoderna (individualista, hedonista e efêmera) ditada pela forma de produção capitalista, faz com que esse mesmo trabalho distancie e reforce a indiferença e a solidão entre os colaboradores, bem como cause uma influência no julgamento de si mesmo de forma negativa.

A frieza do mundo corporativo somada à supressão do potencial humano pelo trabalho automático e/ou desprovido de autonomia, prazer ou de realizações, pode causar a ruptura entre trabalho e afeto, o que tende a transparecer na perceção do colaborador uma falta de sentido no que ele faz. Tudo isso, pode levá-lo a fazer críticas severas a si mesmo, ter perspetivas negativas em relação ao futuro e um distanciamento social.

O trabalho como regulador social é fundamental para a subjetividade humana, e essa condição mantém a vida do colaborador; quando a produtividade o exclui podem ocorrer as seguintes situações: reatualização e disseminação das práticas agressivas nas relações entre os pares, gerando indiferença ao sofrimento do outro e naturalização das imposiçóes administrativas; pouca disposição psíquica para enfrentar as humilhações; fragmentação dos laços afetivos; aumento do individualismo e incorporação do pacto do silêncio coletivo; sensação de inutilidade, acompanhada de uma progressiva deteriorização identitária; falta de prazer; demissão forçada; e sensação de esvaziamento.

Em modo conclusivo, desta minha reflexão citaria Albert Camus:

“Sem trabalho, toda a vida apodrece, mas sob um trabalho sem alma a vida sufoca e morre.”

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