Artigo de opinião escrito por José Mario Leite – Gestor Financeiro da Fundação Champalimaud

Antes da elaboração e aprovação do já célebre PRR – Plano de Recuperação e Resiliência havia documentos que, sem a amplitude deste e, sobretudo, sem o financiamento excecional obtido junto da União Europeia, no âmbito da política de superação da crise provocada pela pandemia do Covid19, já definiam e caracterizavam a situação portuguesa e apontavam as linhas que deveriam orientar as políticas de desenvolvimento e que davam pelo nome de PNPOT – Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território. 

Não tenho capacidade para avaliar qualquer um deles mas, pessoalmente, valorizo mais a metodologia usada para este último pois apesar das inegáveis qualificações do engenheiro António Costa e Silva prefiro o trabalho de equipa que colija, congregue, adeque e potencie várias áreas e em que cada uma delas seja tratada por um ou, preferencialmente, vários especialistas. É verdade que a necessidade de obter um documento global num curto espaço de tempo, num ambiente inesperado, seria pouco compatível com a elaboração de um programa levado a cabo por várias equipas que haveria que harmonizar e consolidar antes de estruturar a versão final e definitiva. Mas igualmente o PRR tem um âmbito de aplicação muito mais curto, em termos temporais e, obviamente, não colide com as grandes opções já definidas no PNPOT, como o demonstra a aposta, cada vez maior, na ferrovia, em contraciclo com o que foi feito nas décadas anteriores.

Na Gulbenkian, numa sessão privada, para os quadros daquela Fundação, tive o privilégio de assistir a uma exposição, muito interativa, levada a cabo por um dos coordenadores setoriais do plano publicado em 2007 e revisto entre 2016 e 2019. Dos vários quadros, gráficos e imagens, ali trazidos, dissecados e justificados, chamou-me, especialmente a atenção a figura que reproduzo onde são evidenciados os eixos de desenvolvimento territorial. As linhas de força ali identificadas e apontadas, como necessárias para consolidar a coesão territorial, despertaram, de imediato, a memória de uma outra imagem que eu tinha, vinda dos bancos da minha escola primária, na altura em que se estudava e era necessário saber (e papaguear) as linhas do caminho de ferro, a sua origem, destino e todas as várias estações e apeadeiros. De regresso a casa procurei uma figura que retratasse o panorama nacional da ferrovia, antes do início do desmantelamento, começado pelas linhas de via estreita mas, chegando mais tarde, como se sabe, às de bitola superior, embora de forma mais moderada e cirúrgica.

A coincidência entre as imagens era, como se pode, facilmente, constatar, demasiado óbvia: o desenvolvimento nacional, fomentador da coesão territorial e potenciador da evolução económica coincidia com as principais vias de comunicação rasgadas no século e exploradas durante a miaior parte do século XX.

Isso não é novidade, dirão. Por isso se fizeram também e melhoraram as estradas.

As vias de comunicação são essenciais para o desenvolvimento das regiões, contudo, nem todas funcionam da mesma forma e têm a melhor eficácia. É verdade que a rodovia tem, relativamente à ferrovia, a vantagem da flexibilidade, da autonomia e da adaptabilidade. Mas essa é uma vantagem de que nem todos podem aproveitar. Porque, como diz o povo, o que traz também leva e as rodovias não trouxeram, só por si, o esperado desenvolvimento, bem pelo contrário arruinaram algumas atividades, como os restaurantes de estrada, que desapareceram, na sua quase totalidade, a produção agrícola que se viu, de repente, em competição direta com unidades de grande dimensão e monocultura, cujos custos fixos são, quando refletidos no preço unitário, reduzidíssimos, impossíveis de igualar nas hortas do interior agrícola, sem falar nos artefactos produzidos em grandes séries, arruinando artesãos, agricultores, produtores regionais e pequenos industriais. Facilitaram a penetração das grandes empresas, dos gigantes da distribuição e a disseminação de produtos de baixo custo, baixa qualidade e sem qualquer identificação regional.

Ao contrário da linha férrea.

Porque, mais rígida e exigindo um investimento inicial maior, implica uma aposta real nos territórios por onde passa, cria emprego permanente que não é possível deslocalizar e amarra aos locais que visita uma série de outros serviços conexos. Foi isso que aconteceu quando o país foi rasgado pelas variadas plataformas ferroviárias e que se mantiveram ativas e rentáveis durante décadas. É verdade que a sua rentabilidade decaiu a partir do terceiro quartel do século XX mas a principal razão não esteve na estrutura em si, mas na falta de investimento a que foi votada. A sua manutenção baseada em mão de obra barata e por isso intensiva, durante dezenas e dezenas de anos, criou a falsa sensação que após o investimento inicial nada mais havia a fazer do que uma manutenção diária e rotineira. Tal como aconteceu, em muitas áreas da economia, a justa valorização do trabalho manual fez subir os seus custos implicando a queda, a pique, da sua rentabilidade. Em vez de adaptar a pesada infraestrutura à modernidade, a opção mais fácil foi o abandono, começando pelas mais periféricas (precisamente as que maior dano causariam nos locais que serviam, com a sua ausência), prometendo a “compensação”, pela rodovia que haveria de tardar, agravando ainda mais o atraso, o abandono e a consequente desertificação… agora facilitada com a facilidade do novo mapa rodoviário.

É verdade que esta opção não foi única nem exclusiva do nosso país. A alteração do paradigma da mobilidade varreu a Europa. Contudo, nos nossos parceiros europeus, cedo se percebeu que o caminho actual, adequado, passava pelo retorno ao investimento no caminho de ferro, recuperando-o, aproveitando a sua comodidade, explorando e reforçando os baixos custos de operação e  potenciando a sua vertente ecológica.

A eletrificação das linhas operou essa alteração, melhorando, como que por magia, todas essas áras. Reduziu, drasticamente a poluição ambiental, que já dera um primeiro passo com as locomotivas a diesel, diminuiu o nível de ruído e fez baixar, ainda mais, o custo de operação, sobretudo nas zonas montanhosas em que a automação eletrónica permite o aproveitamento total da energia, convertendo a força necessária para frenagem nas descidas, em força motriz que contribui fortemente para oesforço energético necessário à subida.

Se por acaso houver um produto pesado em altitude, para transportar para uma cota mais baixa, o trabalho desenvolvido pela deslocação descendente pode ser mais do que suficiente para fazer subir toda a carga que faça o percurso inverso. É o caso das Minas de Ferro de Moncorvo.

Só por si justificariam a reativação da linha do Sabor.

A menos que o tão anunciado projeto mineiro seja apenas para entreter papalvos, para enganar os naturais da terra do ferro, para ajudar políticos a construírem ficções e fantasias com que pretendem garantir a sua eleição, ninguém de bom senso, com os pés assentes nesta terra, vivendo em pleno século XXI pode defender consistentemente a reativação da atividade extractiva do Cabeço da Mua sem reclamar a reativação da ferrovia a partir do Pocinho, para norte.

Infelizmente, tão cedo quanto cheguei a esta conclusão, óbvia e natural, quão cedo percebi que não teria eco na autoridade municipal. Indiferente, continuei a minha cruzada, juntando a minha voz à dos que reclamam este necessário investimento como medida indispensável já nem para o desenvolvimento, mas, no imediato, para começar a estancar a degradação acentuada e violenta que se abate sobre o interior português, tão dolorosamente retratada nas conclusões dos mais recentes Censos. 

Não dei demasiada importância à ausência do Município da minha terra, julgando-o basear-se numa linha programática própria avessa à ferrovia. Logo que as vantagens desta se avolumassem, haveria de se processar a alteração ideológica e cedo contaria com a companhia do poder eleito do meu concelho.

Para grande espanto, porém, vi-o, fazendo coro com outros autarcas cujos concelhos igualmente beneficiariam com a reabilitação da infraestrutura, a defender (e bem) a reabertura da linha do Douro, entre o Pocinho e Barca d’Alva, mas… sobre a extinta linha do Sabor, nem uma palavra, nem um gesto, nem um único lamento.

Estupefacto, lastimei o sucedido.

A justificação que me chegou, por interposta pessoa, é deveras estranha e incompreensível. A linha do Sabor é irrecuperável, dizem. Ao contrário do troço de via larga, que o ministro já disse estar nos planos do Governo reativar, não é sensato esperar que o Ministério das Infraestruturas e Habitação esteja disponível para investir o que quer que seja numa linha regional já há muito encerrada e arrumada!

Pasmei!

Apeteceu-me ressuscitar o slogan do Maio de 68 “sejamos realistas, peçamos o impossível!”

Mas nem é necessário ir tão longe nem reivindicar tal utopia. A linha é possível, é desejável, é importante, é necessária, é imperiosa. É, pelo menos, merecedora de uma reivindicação. E se alguém deve insistir nela, quem melhor do que aqueles que o eleitorado escolheu para liderar os destinos concelhios?

Para pedir o óbvio, não é necessário escolher ninguém em especial. Qualquer um o pode fazer. O que se impõe, o que se precisa, o que é necessário é quem seja capaz de subir um nível e reclamar o desejável, dando voz às ambições legítimas dos habitantes, independentemente da sua “razoabilidade”. 

Exige-o a história, o prestígio e o estatuto conquistado pelo concelho, ao longo da sua grande e gloriosa história.

Há, felizmente, no concelho a tradição de ser ambicioso no que ao futuro comum diz respeito. Além de que a retoma da atividade no corredor entre Pocinho e Carviçais não é mais irrealista do que ter uma ponte suspensa entre Peredo e Foz-Côa, sendo contudo mais racional, benéfica e razoável.

É verdade que não estando ainda na agenda dos responsáveis governamentais lhe retira a possibilidade de ser executada no curto-prazo. Mas é, precisamente, por não estar no horizonte visível que é mais necessário levantar a voz, reivindicar, mostrar a insatisfação, exigir justiça e equidade. 

Quem acreditava, em 1995 que era possível desviar para o Sabor a barragem projetada para o Coa e com um fortíssimo lóbi para que ali fosse feita? 

Foi reivindicada, como uma ambição possível, foi reclamadacomo uma meta atingível, foi exigida como uma obra justa e ajustada e, a seu tempo, foi construída. Apesar das contrariedades, das fortes oposições e do desinteresse inicial!

Ainda há pouco tempo a questão ferroviária era algo totalmente arredada do horizonte dos governantes e dos poderes estabelecidos aos mais diversos níveis da administração. 

Algo inconcebível, inatingível, inaceitável. 

Hoje já é vista com outros olhos, com outra apetência, com outra vontade. 

É preciso lutar, insistir, porfiar até que a razoabilidade nasça,que o bom senso e, sobretudo, a justiça, venha ao cimo.

Reabilitação da linha do Douro, em toda a sua extensão? 

Sim, claro. 

E a do Sabor, também! E, igualmente, a do Tua.

Ambas, em toda a sua extensão, ou seja, até à fronteira com Espanha!

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