Artigo escrito por Miguel Gomes – escritor

As cinzas dormem esquecidas do fulgor da noite anterior, repousadas na espessa pedra cujos pés das panelas negras fizeram as covas onde se acumulam as memórias do que não se sabe cozinhar. Por cima, o presunto defuma-se e as teias de aranha ondulam sob o peso da fuligem que o vento, aproveitando as telhas mal sobrepostas, anima.

A noite de Natal, ao contrário das outras, traz consigo o barulho bater das portas do automóvel de cilindrada elevada cuja toponímia automobilística ostenta brasões de cantões difíceis de pronunciar. Depois da velha porta de madeira abrir e se ouvir o tilintar da pequena persiana que serve de coberto para a caixa de correio, ouvem-se os miúdos descerem chapinando o tempo e a chuva que se infiltra por onde quer que se olhe.

A aldeia ilumina-se de alegria, não há pinheiro que resista aos cavaleiros perdidos que regressam ao lar que os viu parir. Os gorros sobre as orelhas e as felpudas pantufas contrastam com os chinelos negros da matriarca octogenária de luto vestido pela memória de quem se sentava à cabeceira da mesa cujo tampo de inox vê, hoje, toalhas de papel em que  pontas se rasgam para que miúdos, às escondidas, imitem vícios de adulto e enrolem pequenas cigarrilhas cujo mau gosto desencorajará, felizmente, aventuras maiores.

As memórias tropeçam e espreitam pela pequena janela nublada da cozinha. O louceiro e os púcaros alinhados não permitem grandes veleidades natalícias, a mão que se limpa ao avental azul e o desaperta, para passar as mãos nas fartas cabeleiras dos pequenos e, depois, o beijo destreinado nas faces cuja canalha acolhe com um franzir de testa e o sorriso pelas cócegas que o buço incita. Há um respeito pela simplicidade de uma casa em formato de manjedoura. A natureza curva-se e chora de emoção por se sentir amada.

Ontem o braseiro uniu família, até os vivos apareceram. A distância do céu ao coração dos que ficam é curta. Tarde na madrugada os carros de matrícula estrangeira arrancaram rumo à cidade. Levaram com eles a saudade. E hortícolas que a terra, em agradecimento, desabrocha a quem a ama.

Abotoado o avental azul, sacudiu da borra de café os pequenos grilos brancos e verteu no púcaro metálico o silêncio a fumegar. O papel colorido rasgado contrasta com o cinzento das paredes. O café amorna o palato e o sorriso tímido de quem está em paz com a vida. E com a dor.

As cinzas, que dormem esquecidas do fulgor da noite anterior.

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