Artigo de opinião escrito por Patrícia Freitas – estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto


O título é familiar. Woody Allen escreveu uma belíssima obra pouco conhecida entre as massas. Tristemente, é um título sugestivo da nossa realidade. A minha geração não cresceu a consumir Godard, Bertolucci ou Pasolini. O que nos chega de Gogol e Kropotkin já chega tarde e a cultura clássica escasseia. Na escola, poucas vezes ouvimos falar sobre a relação intrínseca entre a cultura e todos os outros domínios que fazem parte do quotidiano do homem: a política, o trabalho, o lazer. O próprio conceito de lazer está, agora, dissociado das atividades culturais que temos ao nosso dispor. A febre do teatro acabou; o café literário lembra uma vivência do século XX; a música ao vivo é sempre acompanhada pelo telemóvel.

A cultura é aquele parente pobre que está lá, temos pena dele, mas no fundo sabemos que continuará a ser pobre. Não vale a pena tentar mudar a sua situação, porque a presença dele é certa, mas não dá muita despesa. Há sempre alguém que lhe dá uma esmola, que o vai mantendo vivo, a respirar, a vaguear pelas ruas, à mercê da caridade de uns poucos. E todos temos pena dele. Mas, enfim, deixemo-lo andar. 

É preciso, antes de mais, tratar a cultura com respeito. As sociedades são construídas sobre uma base muito sólida das suas raízes culturais. É daí que nasce a identidade de um país, de uma cidade, de uma aldeia. Como se trata de uma manifestação tão antiga como o próprio homem, a prática sugere que se tenha tomado como um dado adquirido: a cultura existe porque existimos nós. Mas isto não é suficiente para manter vivos os seus desígnios. A cultura persiste porque nos desdobramos no tempo, num processo de intercomunicação com outros agentes e com outras gentes. O direito romano caminhou sobre os séculos que se alongaram à sua frente e ainda hoje debatemos na faculdade de direito a Lei das XII Tábuas e o costume elaborado pela vox populi. Isto também é cultura, do passado, do presente e do futuro, completamente transversal à passagem do tempo. 

Se a cultura acabasse de vez, sobraria o abandono, o vazio permanente no pensamento. E, agora, está na altura de escrever o que não se quer ler: Portugal é um país sem política cultural, facto que se transporta também para o panorama local. Da esquerda à direita, a instrumentalização da cultura foi e é uma característica da deficiente convivência entre a política e os agentes culturais. Há vários anos que se insiste na questão da falta de financiamento nesta área; muito se disse, muito se escreveu, muito se gritou na rua, mas o grau de revolta permanece inalterado. 

Mas, afinal, insiste-se muito no tratamento desigual da cultura perante as outras valências da sociedade. Se recuarmos às formas mais primitivas de organização social, de vida coletiva, em todas elas podemos encontrar manifestações culturais. As manifestações artísticas do Paleolítico Superior são um claro exemplo da existênciauma “humanidade superior”. Os homens pré-históricos, desconhecendo ainda as suas motivações, dedicaram-se às artes, sendo já portadores de uma extrema sensibilidade à cor e à forma. Apesar da aparente simplicidade destas manifestações, elas encontram no presente uma curiosidade por parte de académicos, investigadores, e até consumidores da chamada “indústria cultural”. 

Podemos estabelecer um elo de ligação entre o consumo ou não consumo de cultura e o sistema económico que vigora em praticamente todas as sociedades: o capitalismo neoliberal. Acredito que haja uma característica que torna estes dois elementos indissociáveis: a facilidade de obter lucros com o que quer que seja. Tendo em conta que a cultura, no seu sentido mais vanguardista e disruptivo, não produz qualquer tipo de vantagem económica, é dispensável e não está no rol da lista de investimentos de baixo risco! Deste modo, o pensamento generalizado é o de que não existe nenhum benefício em investir na área cultural. Veja-se, ao longo da história do cinema, a discrepância que existe entre o financiamento que é cedido à indústria de Hollywood e o subfinanciamento crónico do cinema europeu. A pergunta é sempre esta: gera lucro? Acredito que tenha sido esta mesma questão que, em 1975, impediu Jodorowsky de realizar o “Duna”. Claro que o filme acabou por ser realizado nos Estados Unidos, pelas mãos de Lynch. 

É bom que estejamos conscientes que as consequências destas políticas já estão a ter repercussões no nosso modo de vida. A alienação é uma das mais visíveis, no sentido em que o sujeito social se encontra neste momento preso à ideia do trabalho. Pior ainda: o trabalho, objetivamente, não constitui sequer um meio de acesso à cultura, pois os rendimentos do trabalho são imediatamente absorvidos pelas “necessidades” primárias. Portanto, está na hora de reconsiderar este caminho que não é, certamente, o do progresso. Não esquecer que “A cultura é uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos”.

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